segunda-feira, 26 de outubro de 2020

É bizarro, mas pode fazer sentido: na Europa, os investidores pagam para emprestar dinheiro aos governos

Veja a tabela abaixo. A coluna yield mostra os juros anuais pagos pelos títulos públicos a 10 anos. 

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Juros (yield) pagos pelos títulos públicos a 10 anos dos governos de cada país. Fonte: https://countryeconomy.com/bonds

Sim,  está a ler corretamente: hoje, um investidor tem de pagar para emprestar dinheiro por dez anos aos  governos da Suíça, da Alemanha, da Dinamarca, da Holanda, do Japão, da Áustria, da Finlândia, da França e da Bélgica.

Quem emprestar dinheiro a estes governos receberá, daqui a 10 anos, um valor menor do que o emprestado.

A título de ilustração, quem emprestar hoje 1.000 francos suíços ao governo da Suíça receberá de volta, daqui a 10 anos, 938 francos suíços.

Quem emprestar para o governo da Suécia não pagará nada, mas também não receberá nada a mais após 10 anos.

Já quem emprestar para os governos de Espanha e Portugal receberá juros de 0,17% e 0,15% (26/10/2020) ao ano, respectivamente. Ou seja, se  emprestar 1.000 euros  ao governo espanhol, receberá daqui a 10 anos a impressionante soma de 1.017 euros. E isso esquecendo o respectivo imposto sobre o rendimento aplicável.

O governo da Alemanha, por outro lado, paga juros negativos até os títulos de 15 anos de prazo.

Já o governo da Dinamarca está prestes a bater um recorde bizarro: falta 0,01 ponto percentual para ele se tornar o primeiro governo do mundo a usufruir juros negativos em todos os seus títulos públicos.

Com efeito, o volume de dinheiro aplicado em títulos públicos com juros negativos atingiu um recorde histórico: há simplesmente 12 trilhões de dólares aplicados nestes títulos, como mostra este gráfico do Financial Times.

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Evolução da quantidade de dinheiro (em dólares) aplicado em títulos públicos com rentabilidade negativa

A pergunta é inevitável: por que é que alguém aceitaria pagar para que o governo aceitasse o seu dinheiro emprestado? Tal prática não vai contra toda a lógica financeira e, até mesmo, da preferência temporal?

Comecemos pelo básico. 

Não há escapatória

É facto que tal idéia seria completamente inconcebível no mundo anterior à crise financeira de 2008. Mas aquele era outro mundo. Hoje, como consequência de todos os programas de abrandamento quantitativo realizado pelo Banco Central Europeu, a prática de pagar para emprestar dinheiro ao governo já se tornou norma na Europa.

Pior: ela faz total sentido hoje. 

De início, muitas pessoas, normalmente leigas, perguntam-se por que pagar para emprestar dinheiro ao governo (que é o que ocorre quando as taxas de juros são negativas) sendo que seria muito mais vantajoso simplesmente deixar o dinheiro parado. Afinal, no primeiro caso, você está perdendo um pouco do dinheiro; no segundo, você mantém a quantia original intacta.

Essa pergunta é típica de quem não conhece o atual sistema financeiro e monetário. A esmagadora maioria do dinheiro (mais de 85%) está na forma dinheiro escritural; apenas uma parte mínima (não mais do que 10%) está na forma de notas e moedas metálicas. 

Sendo assim, não há como os investidores e fundos de investimento que gerem biliões de euros — ou até mesmo aqueles que gerem "apenas" milhões de euros — irem  ao banco da esquina e sacarem tudo em espécie. Os bancos não restituem em espécie esses valores. Eles estão legalmente dispensados, pelo governo, de fazerem isso. O dinheiro eletrónico está "preso" no sistema financeiro e não há como convertê-lo integralmente em notas e moedas metálicas. Tudo o que os investidores podem fazer é transferir dinheiro electrónico de um lado para outro. E só. Não há como sair do dinheiro electrónico.

O Banco Central da Suíça, por exemplo, já anunciou que os bancos não mais têm de fornecer notas a nenhum fundo de investimento que queira sacar dinheiro. Uma empresa de seguros tentou fazer isso, mas o banco se recusou. O Banco Central da Suíça, portanto, fez uma declaração ao mundo: ele deixou claro que não há como fugir do dinheiro eletrónico digital.

Portanto, dado que não há como fugir deste novo arranjo monetário e bancário, a única maneira de os grandes investidores e grandes fundos de investimento preservarem seu capital é investindo-o em activos que, pelo menos em tese, são considerados seguros e até mesmo "livre de riscos". 

Ativos considerados seguros são os títulos da dívida dos governos de países desenvolvidos. Já os ativos considerados "livres de risco" são, principalmente, os títulos da dívida dos governos alemão, suíço, holandês, austríaco e nórdicos. Para estes últimos é direcionada a maior parte do dinheiro dos grandes investidores e dos fundos de investimento europeus. O restante vai para os títulos de mais curto prazo dos outros governos da Europa.

Adicionalmente, vale enfatizar que, numa situação em que as taxas de juros estão em queda, é possível obter elevados ganhos de capital ao comprar títulos de longo prazo: à medida que os juros vão  caindo ainda mais, os preços de mercado desses títulos vão subindo

Ou seja, se você comprar um título por €100, e os juros caírem, você pode revender esse mesmo título por, digamos, €102. Isso é uma taxa de retorno muito positiva, e nada negativa.

O que por aí vem

Tendo entendido agora que fundos de investimento e hedge funds não têm como converter em papel-moeda todos os biliões de euros sob sua administração — eles operam com dinheiro electrónico e esse dinheiro electrónico pode apenas ser transferido de um lugar para outro, — torna-se mais fácil começar a perceber o que se passa.

Mas por que é que eles simplesmente não deixam esse dinheiro parado numa conta-corrente de algum banco? 

  • Em primeiro lugar, porque alguns bancos, obviamente, também já passaram a impor "juros negativos" — ou seja, passaram a cobrar juros de seus depositantes. Na Alemanha, desde 2016, dois grandes bancos passaram a praticar taxas de juros negativas sobre depósitos acima de 100.000 euros. E não só de empresas, mas também de pessoas físicas. Na Suíça, alguns bancos também já estão fazendo o mesmo. Nada garante que a prática não irá se disseminar. Mas isso ainda é o menos. Ao menos por enquanto, a grande maioria dos bancos europeus ainda não adotou essa prática. Logo, a pergunta permanece: por que é então os grandes investidores e fundos de investimento simplesmente não deixam esse dinheiro parado nalguma conta-corrente de algum banco? 
  • É aí que a encrenca se revela. A julgar pelas atitudes destes investidores, tudo indica que, no mínimo, eles não estão seguros nem quanto à solidez dos bancos europeus e nem quanto à situação da economia europeia.

Falando mais claramente, este fenómeno que está ocorrendo na Europa indica que:

  • 1. Estes grandes investidores acreditam que uma crise económica se aproxima, o que tende a afetar os bancos.
  • 2-a. Como consequência, há uma grande desconfiança em relação ao sistema bancário europeu. Assim como ocorreu no Chipre, caso os bancos europeus quebrem não mais haverá pacotes de socorro com dinheiro público; os próprios depositantes é que terão de socorrer os seus  bancos respectivos.
  • 2-b. As regras da União Europeia, desde janeiro de 2016, proíbem resgates bancários com dinheiro de impostos ("bail-outs"), permitindo somente os "bail-ins", que é quando o dinheiro dos depositantes do próprio banco é utilizado para recapitalizar o banco insolvente. Em termos práticos, o dinheiro que está nas contas-correntes, nas contas-poupança ou em CDBs é confiscado e incorporado ao património líquido do banco, aumentando seu capital.  O dinheiro que até então era contabilizado como um passivo para o banco torna-se um património líquido do banco.
  • 3. E dado que os títulos públicos alemães, suíços, dinamarqueses, holandeses e austríacos são vistos como mais seguros que quase todos os outros, é para eles que vai a maior fatia do dinheiro.

Num cenário de grandes incertezas económicas e de desconfiança em relação à solidez do sistema bancário, os investidores racionais fazem exatamente o que já estão fazendo agora: direcionam o seu capital para os ativos mais seguros e mais líquidos que existem, mesmo que para isso tenham de pagar uma taxa (os juros negativos). 

E eles pagam alegremente essa taxa, desde que ela lhes garanta protecção.

Mais ainda: caso os juros caiam ainda mais — o que significa que o preço dos títulos está subindo — é possível auferir grandes lucros. E tudo indica que os juros vão continuar a cair. Logo, é uma situação óptima do ponto de vista racional: você está em um porto seguro e ainda tem boas chances de lucrar.

Os grandes investidores já perceberam que os Bancos Centrais, principalmente o europeu, não só não deixarão as taxas de juros de longo prazo subir, como ainda estão a fazê-las cair. Os BCs  recorrem a todos os tipos de heterodoxias monetárias — desde a compra de títulos governamentais de longo prazo até a compra de todos os tipos de dívida emitidos por empresas — para tentar manter baixas todas as taxas de juros de longo prazo. 

O Japão foi o primeiro a fazer isso. Começou ainda no início da década de 2000. Após 2008, o Fed fez o mesmo (mas interrompeu essa política em 2014). O Banco Central Europeu entrou na onda em 2010. O Banco Central da Suíça fez coro a partir do final de 2011.

E, dado que as taxas de longo prazo tendem a manter-se em queda, faz todo o sentido para os grandes investidores europeus continuar a comprar títulos públicos.

Logo, eles estão fazendo exatamente o que qualquer investidor racional faria em épocas de grande incerteza: estão tentando manter seu capital. 

Eles querem receber de volta o máximo possível do valor total de que eles inicialmente abriram mão. Para isso, aceitam pagar aos governos uma "taxa de custódia": afinal, é melhor aplicar em títulos públicos e, na pior das hipóteses, pagar uma taxa por isso do que aplicar em bancos e ver esses bancos quebrarem numa nova recessão e serem obrigados a abrir mão do seu dinheiro para socorrer os bancos.

E há também um bônus: caso tudo "dê certo" — isto é, caso os juros destes títulos públicos continuem a caír —, ainda é possível obter um bom lucro com a venda antecipada destes títulos.

Isso não ocorre nos EUA

Nos EUA, há um serviço privado que não existe na Europa. São as contas CDARS (Certificate of Deposit Account Registry Service).

Quando você coloca seu dinheiro num CDARS, ele divide esse dinheiro em várias contas bancárias entre mais de 3 mil bancos diferentes. Cada conta bancária fica dentro do limite de US$ 250.000 garantido pelo FDIC (o FGC americano) em caso de falência bancária.

Ou seja, por meio dos CDARS, os milionários e bilionários americanos podem dividir as suas fortunas em mais de 3 mil bancos distintos, em montantes que não ultrapassam US$ 250.000 por banco, de modo que o montante total acaba contando com a cobertura da FDIC. Assim, eles têm a segurança de que serão totalmente restituídos em caso de quebras bancárias, não perdendo nem um centavo.

E este é um dos factores por que os títulos públicos americanos nunca entraram no negativo (outro factor é o facto de que o Fed nunca embarcou na bizarrice de impor taxas de juros negativas sobre toda e qualquer quantidade de dinheiro que os bancos comerciais depositam nele, como faz o Banco Central Europeu).

Conclusão

As taxas de juros que os grandes investidores europeus pagam aos governos europeus em troca dos seus títulos nada mais são do que um seguro contra uma recessão e contra uma eventual insolvência bancária durante esta recessão. Tal atitude faz sentido.

O facto de que milionários e bilionários pagarem para emprestar dinheiro aos governos europeus indica que há um crescente temor de que haverá uma contração na economia européia. E, pelo andar da carruagem, imaginam que esta contracção tende a ser aguda.

Títulos públicos de vários países (inclusive Portugal, Espanha e Itália) com juros negativos podem ser um indicativo de um amplo temor entre os grandes investidores de que se está  avizinhando algo semelhante à crise de 2008-2009. 

"Melhor uma perda pequena e segura do que uma perda enorme e altamente provável" tornou-se o mantra entre os grandes investidores europeus.

Trata-se de uma reação perfeitamente sensata a um cenário pós-2008.

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Adaptado de um artigo original de Anthony P. Geller  (formado em economia pela Universidade de Illinois, possui mestrado pela Columbia University em Nova York e é Chartered Financial Analyst credenciado pelo CFA Institute)


domingo, 25 de outubro de 2020

 O que é e quais efeitos tem um programa de “abrandamento quantitativo” (AQ) ou (QE)

O Banco Central Europeu anunciou, em janeiro, que iria adoptar a política do "abrandamento quantitativo" (AQ), chamado tecnicamente de Quantitative Easing (QE).  O plano é comprar, mensalmente, 60.000 milhões de euros em títulos públicos e privados na posse do sistema bancário.  O programa será mantido até totalizar o valor de 1,1 biliões de euros.

O Federal Reserve, o Banco Central americano, adotou o AQ do início de 2009 até outubro de 2014.  O Banco Central do Japão, o pioneiro, adoptou-o em março de 2001, e voltou com tudo em 2011.  O Banco Central da Inglaterra começou em 2009 e ainda não parou.  Já o Banco Central da Suécia adoptou o programa em fevereiro de 2015.

No entender de muitos, este programa de "injeção de dinheiro" na economia é a chave para a recuperação.  No entanto, para avaliar realmente os seus efeitos, convém conhecer tanto sua natureza quanto suas consequências.

Em que consiste exatamente o abrandamento quantitativo (AQ)?

O AQ não é mais do que a compra, pelo Banco Central, de determinados activos na posse do sistema bancário. 

Imagine que um determinado banco do seu país (o Banco A) tenha adquirido recentemente um título do Tesouro pelo valor de €10 milhões, e cujo prazo de vencimento é de 10 anos (enquanto o título não vence, o Banco A recebe juros do tesouro). 

Agora, suponha que o Banco A repentinamente esteja necessitado de aumentar a sua liquidez.  Neste caso, dado que ainda falta uma década para o que o governo do seu país devolva o dinheiro que o Banco A lhe emprestou, o Banco A tem duas opções:

  • 1) pedir um empréstimo  ao próprio Banco Central, utilizando esse título do Tesouro como garantia (como quem pede um empréstimo para a compra de um imóvel e fornece como garantia o próprio imóvel); ou
  • 2) vender o título da dívida a outros investidores.

O problema com a primeira opção é que ela representa uma solução apenas temporária. Afinal, o empréstimo junto do Banco Central terá de ser liquidado.  Além do mais, ainda há um custo financeiro: o crédito que o Banco Central concedeu ao Banco A vencerá em pouco tempo (na Europa, pode ser um mês, um trimestre ou, na melhor das hipóteses, 3 anos), e o Banco A ainda terá de pagar juros ao Banco Central.  Ou seja, na prática, o Banco A não melhora estruturalmente a sua liquidez: o saldo de caixa apenas aumenta temporariamente, e ainda com o ónus de arcar com um custo financeiro.

A segunda opção é, em princípio, mais interessante para o Banco A: ele vende o título da dívida pública a outro banco (por exemplo, o Banco B), recebe o dinheiro imediatamente, e  desfaz-se em definitivo desse título, conseguindo melhorar de forma estrutural a sua liquidez sem a necessidade de pagar juros  ao Banco B.

No entanto, do ponto de vista macroeconómico, essa transação tem um defeito: sim, o Banco A melhora a sua liquidez, mas fá-lo à custa de uma pior da liquidez do Banco B. (O Banco B reduziu o seu saldo de caixa ao comprar o título da dívida na posse do Banco A). 

O que fazer, então, se o nosso objetivo é o de que alguns bancos melhorem a sua liquidez sem que outros, no entanto, piorem as suas?  É aqui que entram os programas de abrandamento quantitativo.

Mediante um AQ, é o Banco Central quem compra a dívida pública (ou qualquer dívida privada) na posse dos bancos.  E como faz essa compra?  Criando dinheiro do nada.  Na prática, o Banco Central simplesmente aumenta o saldo da conta-corrente que os bancos têm perante o Banco Central, criando novos dígitos eletrónicos nessas contas.  O efeito é exatamente o mesmo de imprimir dinheiro.

Consequentemente, e seguindo nosso exemplo anterior, o Banco A pode melhorar estruturalmente a sua liquidez sem que nenhum outro banco tenha piorado a sua, pois o Banco Central criou nova liquidez com a qual saneou o balancete do Banco A.

Supostamente, quais são os efeitos?

Segundo alegam os defensores dessa política, os programas de AQ possuem vários efeitos que resultam em benefícios para o conjunto da economia e que permitem reanimá-la:

  • Em primeiro lugar, contribuem para reduzir as taxas de juro: se o Banco Central aumenta a procura por determinados títulos da dívida pública, a taxa de juro desses títulos irá cair (para simplificar: comprar um título da dívida é equivalente a emprestar ao emissor desse título; e quanto maior a oferta de empréstimos, menores os juros). Por si só, isso já constitui um estímulo para as entidades cujos títulos da dívida são comprados pelo Banco Central: os juros mais baixos tornam mais barato o seu custo de financiamento.  O Tesouro, por exemplo, poderá agora endividar-se a custos mais baixos, liberando recursos para outros fins.
  • Em segundo lugar, a situação financeira dos bancos irá melhorar: uma parte dos seus ativos (empréstimos concedidos ao governo) deixará de estar comprometida a longo prazo, pois estes ativos foram substituídos por liquidez criada pelo Banco Central. 
  • Em terceiro lugar, a combinação entre juros mais baixos e aumento da liquidez dos bancos deveria aumentar a concessão de novos empréstimos  ao setor produtivo da economia.  Por um lado, os balancetes dos bancos estão mais sólidos por causa do AQ e, consequentemente, os bancos dispõem da maior capacidade para conceder novos empréstimos.  Por outro, as taxas de juros mais baixas agora vigentes sobre certos tipos de dívida (por exemplo, a dívida pública) farão com que os bancos procurem outras entidades onde investir a sua nova liquidez: se os cómodos e seguros títulos da dívida não são mais um bom negócio (pois os programas de AQ reduziram os seus rendimentos), então aos bancos não restará alternativa senão assumir maiores riscos e emprestar a famílias e empresas essa nova liquidez  recebida do Banco Central. Adicionalmente, dado que haverá agora vários bancos disponíveis para emprestar a famílias e empresas, as taxas de juros sobre o crédito privado cairão, o que fará com que mais pessoas e empresas se endividem para consumir e investir.
  • Em quarto lugar, o aumento do crédito ao setor privado, e o consequente aumento do consumo e dos investimentos com base no endividamento, trará efeitos positivos para a economia.  Um maior gasto privado tenderá a ressuscitar a economia e, desta forma, não apenas irá reanimar a "atividade económica", como também irá elevar os preços, afastando assim o "terrível" fantasma da deflação.
  • Em quinto lugar, uma parte do consumo estimulado pelo crédito sairá para o exterior e, para isso, será necessário vencer a moeda nacional em troca de outras moedas.  No contexto europeu, o euro terá de ser vendido em troca de dólares, libras ou ienes, o que fará com que estas se apreciem frente ao euro.  Adicionalmente, como todo o mundo antecipará essa depreciação do euro, os especuladores tenderão a acelerá-la, liquidando suas posições em euro ou fazendo vendas a descoberto com a moeda europeia.
  • Em sexto lugar, e por último, a maior disponibilidade de crédito barato, o maior gasto interno, o aumento dos preços, a desvalorização da moeda, e a expectativa de que essas condições de abrandamento e bonança serão mantidas pelo tempo que for necessário para reativar o crescimento económico formarão um marco macroeconómico no qual os agentes se sentirão confiantes para voltar a endividar-se, a investir, a consumir, a exportar e a contratar mais trabalhadores.  Um êxito total.

Quais são as contradições?

Como já deveria ser evidente, se os programas de abrandamento quantitativo fossem tão fantásticos como o esperado, não haveria governo nenhum no mundo (nem mesmo as mais cruéis ditaduras) que deixasse de se aproveitar disso.  No entanto, claramente, este não é o caso: os programas de AQ são a excepção, e não a norma, da política monetária de um país.

Em tempos normais, o motivo é claro: quando a economia está crescendo beneficiada pelo impulso do crédito bancário, com empresas e famílias a endividar-se para investir e consumir, jogar mais lenha na fogueira irá apenas contribuir para sobreaquecer a economia e fazer com que os preços subam mais do que o desejado.

Só que, atualmente, a Europa não está nesse cenário: os bancos não emprestam, as famílias e empresas não se endividam, os preços caem, e ninguém gasta.  Portanto, sob esta realidade, o abrandamento quantitativo parece realmente ser um impulso extremamente necessário a uma economia estagnada, que não viria acompanhado de efeitos adversos.

Só que nem tudo são flores: ao passo que o AQ não irá provocar, no médio prazo, nada parecido com uma elevada inflação, isso não significa que não traga outras consequências prejudiciais.

  • O primeiro efeito é que as baixas taxas de juros não têm por que estimular um novo ciclo de endividamento que reanime a economia, excepto para as entidades governamentais.  Estas continuam plenamente interessadas em manter os déficits orçamentais, que aumentam a dívida bruta, a qual é impunemente transferida para as gerações futuras.  Juros mais baixos sobre a dívida pública sem dúvida facilitam a indisciplina dos governos com o dinheiro dos pagadores de impostos. Para famílias e empresas, no entanto, o raciocínio não se aplica: se elas continuam altamente endividadas, a sua capacidade de gerar riqueza futura é incerta, facilitar-lhes de maneira artificial o endividamento não as levará a aumentar ainda mais seus passivos.  Consequentemente, o dinheiro injetado pelo Banco Central no sistema bancário continuará parado nos cofres dos bancos.  É possível levar o cavalo ao rio (facilitar o endividamento), mas não é possível obrigá-lo a beber a água do rio (endividar-se). Torna-se necessário enfatizar que isso não significa que a redução dos juros por meio do AQ não possua efeitos adicionais: as taxas de juros não são importantes apenas para determinar o volume de um novo endividamento, mas também para determinar o preço dos activos e o ritmo em que se amortiza a dívida passada. Instituir um ambiente de juros extremamente baixos pode não aumentar o crédito, mas seguramente irá diminuir a velocidade a que famílias e empresas reduzem antecipadamente as suas dívidas passadas.  Por exemplo, uma dívida com taxa de juros fixa passará a ser muito mais cara para ser comprada no mercado secundário, o que significa que o devedor está preso a ela; já uma dívida com taxas de juros variáveis deixará de pagar juros, o que significa que não mais será interessante amortizá-la. Adicionalmente, os juros excessivamente baixos estimulam um aumento no preço dos ativos financeiros na decorrência do seu valor presente descontado.Isso explica, em parte, a forte valorização da bolsa de valores dos EUA. A conclusão é que a redução das taxas de juros na sequência de um AQ consolida um contexto de alto endividamento e de sobrevalorização de activos: longe de facilitar o reajuste económico, — que consiste em diminuir o endividamento e direcionar o capital para projetos verdadeiramente mais valiosos — tal política o dificulta.

  • O segundo efeito é que, ainda que os juros mais baixos provocados pelo abrandamento quantitativo de facto estimulassem uma maior concessão de crédito (tal como desejam os defensores desta política), isso significaria apenas que os bancos estariam assumindo riscos maiores do que aqueles que atualmente creem ser prudente assumir.  A ideia, como referido, é que o AQ acabe com a rentabilidade dos activos seguros (títulos públicos) para que assim haja mais empréstimos para atividades rentáveis, porém menos seguras.  Mais dívida e mais risco.  E, consequentemente, muito maior fragilidade financeira: justamente a receita que conduziu o mundo ao desastre da crise atual.  Aliás, o que é mais irónico: justamente por causa dessa política, muitos dos mesmos que hoje defendem o AQ exigiram uma maior regulação do sistema financeiro.
  • O terceiro efeito, e ligando os dois pontos anteriores, é que, se o AQ estimula uma maior concessão de crédito a taxas de juros mais baixas, todos os empresários que se financiaram anteriormente a taxas de juros mais altas verão sua dívida atual como uma desvantagem competitiva.  Se os seus concorrentes conseguirem financiar-se a 2% ao passo que você tem de continuar a pagar 6% durante anos, é óbvio que há aqui algo de errado.  (Justamente porque os programas de abrandamento quantitativo elevam o valor de mercado das dívidas, quem se financiou a 6% não consegue  refinanciar-se a 2%, a menos que consiga transferir para o seu credor os prejuízos gerados por essa redução de juros). 

Consequentemente, não só haverá um estímulo para o financiamento de projetos empresariais menos seguros, como também se concede uma vantagem artificial a projetos mais insensatos em detrimento dos mais sensatos.

Conclusão

Os programas de AQ são uma injeção de liquidez que o Banco Central concede ao sistema bancário. Os claramente beneficiados por este programa são os próprios bancos (que melhoram os seus balancetes), o governo (que agora pode ser mais relaxado com o seu orçamento e endividar-se a juros bem menores), os investidores que investiram há mais tempo em activos financeiros a taxas fixas (que ganham valor com a queda dos juros no mercado), os exportadores (por causa da depreciação cambial decorrente do abrandamento quantitativo) e os devedores menos solventes (que agora não terão de liquidar as suas dívidas na mesma velocidade que antes, e cuja dívida poderá ser vendida, a um preço bem maior, no mercado secundário).

Por outro lado, e como consequência, os prejudicados são os aforradores, os pagadores de impostos, os importadores e os devedores mais solventes (que não conseguirão refinanciar-se a juros menores).

O abrandamento quantitativo premia o endividamento e o risco, e pune a poupança e a segurança.  O governo que adota esse programa não quer criar uma economia baseada em novas e boas oportunidades de negócio; quer viciá-la em práticas velhas, arriscadas e comprovadamente fracassadas.

Longe de impulsionar um reajuste salutar da economia, baseado na liberdade de mercado e poupança interna, o objetivo é espremer todo o potencial de um sistema falido dando-lhe uma sobrevida artificial.

Adaptado de um original de Juan Ramón Rallo - diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.  É o autor do livro Los Errores de la Vieja Economía. (JD)

 

A era da insanidade - um resumo das medidas surrealistas dos Bancos Centrais mundiais

A era do papel-moeda estatal não convertível e suportado apenas na confiança dos bancos centrais não para de se superar.
Iniciada oficialmente em 1971, após o abandono do vínculo do dólar ao ouro, a grande experiência dos bancos centrais tem dado origem a excessos recorrentes nos mercados financeiros e não dá sinal de abrandamento.

E nesse processo, o Federal Reserve (Fed), o Banco Central Europeu (BCE) e companhia descarregam munição pesada, inédita, sem precedentes e tudo sem nenhum respaldo da teoria económica, baseada unicamente no medo da deflação, e de os mercados fundirem e o sistema claudicar. O cataclismo financeiro deve ser evitado a todo custo.

Janet Yellen, a presidente do Fed, não exclui nenhuma opção; juros negativos podem ser adotados nos EUA sim. Christine Lagarde, do Banco Central Europeu, promete fazer "tudo o que for necessário". Haruhiko Kuroda, do Banco Central do Japão, jura combater a deflação até as últimas consequências.

E os restantes banqueiros centrais dançam conforme a música: juros negativos, quantitative easing (QE), compra de activos em larga escala.

A extraordinária liquidez injetada no sistema de alguma forma acaba por se manifestar. Cedo ou tarde, aparecem os sintomas decorrentes das políticas monetárias não-convencionais implantadas, especialmente, desde a crise financeira de 2008.

As distorções nos preços dos activos abundam. A magnitude das acções dos bancos centrais assombra cada vez mais. As economias patinam e o mercado laboral preocupa. Mas, a despeito de tudo o que foi feito, os índices de preços ao consumidor não registram aumentos expressivos. O que é pior — na visão dos banqueiros centrais —, em vários países o fantasma da deflação teima em não desaparecer.

Mas não se preocupem, defendem eles, está tudo sob controle. Eles sabem o que estão fazendo. Será que sabem mesmo?

Vejamos alguns factos surreais da economia mundial atual que talvez nos façam, pelo menos, levantar alguns pontos de interrogação.

As políticas não convencionais: taxa básica de juros, QEs e balanços dos bancos centrais

1) Há 35 países com taxas de juros abaixo de 1%. Isso inclui todos os países do G8 e toda a Zona do Euro. Quase 50% do PIB mundial com juros nesse patamar inédito.

2) Com taxas abaixo de 3%, existem 50 países atualmente.

3) Há 5 bancos centrais que já adotaram alguma forma de taxa de juros negativa, ou 23 países submetidos a essa experiência inusitada (Japão, Dinamarca, Suécia, Suíça e todos os membros da Zona do Euro).

4) O Federal Reserve está com juros entre zero e 0,5% há 90 meses, quase uma década. Isto nunca ocorreu na história. No último meio século, os juros situaram-se ao redor de 1% por, não mais do que 6 meses. 

5) Há mais de duas décadas que o Banco do Japão (BoJ) mantém os juros em zero.

6) Após as diversas rodadas de QE, o Fed multiplicou o seu balanço por 5 numa questão de seis anos, alcançando US$ 4,5 triliões.(4,5*10^12)

7) Já o Banco da Inglaterra aumentou em 5 vezes os seus activos desde a  crise de 2008.

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8) Desde o início do chamado "Abenomics", em 2013, o Banco do Japão aumentou o seu balanço em cerca de 200%.

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9) O BoJ já está na nona rodada de QE (quantitative easing).

10) Banco Nacional da Suíça (BNS), na tentativa de sustentar uma base para o euro, expandiu os seus activos na ordem de 5,5 vezes desde 2008, ultrapassando 668 biliões (668*10^9) de francos, o que equivale a mais de 100% do PIB.

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11) Já o BCE de Mario Draghi praticamente triplicou o balanço nos últimos seis anos.

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12)  A magnitude da expansão monetária perpetrada pelos BCs dos países desenvolvidos é comparável a de países que enfrentaram alta inflação ou hiperinflação, como o Brasil da década de 80, o Zimbábue nos anos 2000, a Argentina na era Kirchner e a Venezuela nos últimos anos.

03a.png E o resultado disso tudo? Rendimentos dos títulos (taxa de juros, ou yield), índices de ações, e outros ativos

13)  Os rendimentos das dívidas soberanas estão no menor patamar de toda a história financeira do mundo.

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14) Os juros implícitos nos títulos da Holanda, cujos registos de há 500 anos, nunca estiveram tão baixos.

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15)  O endividamento de grande parte dos governos também está em níveis recordes. Um paradoxo das finanças pós-bancos centrais.

16)  Lembra-se da crise de dívida soberana de 2010/11 dos chamados PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Espanha e Grécia)? À excepção da Irlanda, todas as outras nações estão com um endividamento maior do que aquando da eclosão da crise. Mas o custo do refinanciamento das dívidas baixou, a despeito de tudo. 

17)  O German Bund de 10 anos é negociado a quase 0%, um recorde. Por sinal, está prestes a entrar em  terreno negativo.

18) A Inglaterra realizou um leilão de títulos de 30 anos com cupons de 2,095%, algo inédito para o país. O Gilt de 10 anos também regista as menores taxas de juros da história. 

19) O corolário de juros a níveis irrisórios é o custo de refinanciamento baixíssimo para os governos. Em virtude disso, o Tesouro da Inglaterra resgatou em 2014 os primeiros títulos perpétuos — os quais pagavam um cupom de cerca de 5% e não tinham data para amortização — emitidos durante a bolha do South Sea Company, durante as guerras Napoleônicas e da Crimeia, e durante a Primeira Guerra Mundial.

20) A curva de juros da Suíça (yield curve) está negativa até 33 anos e toda a curva de juros até 5 anos está com taxas abaixo de 1% negativo. Um recorde absoluto — e surreal — da história financeira mundial. Os títulos de dívida a 30 anos rendem 0,07% ao ano. É possível que, no momento em que este artigo for publicado, a curva inteira já esteja abaixo de zero.

Os títulos dívida da Suíça com vencimento a 50 anos (sim, cinquenta) está com rendimento negativo. Se você segurar esse papel por cinco décadas, receberá menos do que o principal investido.

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21) Já a curva de juros do Japão apresenta rendimentos negativos até 15 anos. Vender JGBs (japanese government bonds) a descoberto continua a fazer viúvas (widowmaker trade), há décadas. E o governo deve 250% do PIB.

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22) O German Bund de 10 anos entrou em terreno  negativo. Agora toda a curva e juros da Alemanha até 10 anos está abaixo de zero. E, devido às incertezas do Brexit, o Bund já está a ser negociado a -0,11%. O Bund de 15 anos está quase negativo. Toda a curva de juros até 5 anos está menos 0,5% negativos. Dados de 27/06/16.

23) Até meados de 2014, era desprezível a quantidade de títulos soberanos sendo negociados com rendimento abaixo de zero.

24) Há pouco mais de um ano, quase US$ 2 trilhões de títulos eram  negociados com rendimentos abaixo de zero. 

25) Em janeiro deste ano, já havia um total de US$ 5 trilhões de dívida soberana com juros negativos.

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26) Um mês depois, esse montante subiu para US$ 7 trilhões.

27) E, em Junho, ultrapassou nada menos que US$ 10 trilhões.

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28) Quase 90% do mercado global de dívida soberana, cerca de US$ 22 triliões, rende não mais do que 2% ao ano.

29) O Banco do Japão detém hoje 35% da dívida pública do governo. Há 3 anos, isso não passava de 11%.

30) Nos EUA, o Fed detém 15% da dívida pública federal. Em 2008, os Treasuries no balanço do Fed representavam apenas 5% do total emitido.

31) Quase US$ 1,8 triliões é o valor das hipotecas no balanço do Fed. Sim, as famosas mortgage-backed securities (MBS, títulos suportados em hipotecas) que quase destruiram o sistema bancário americano em 2008. O valor real de mercado desses ativos? Só Deus sabe.

32) Como resultado dos estímulos agressivos do "Abenomics", o Banco do Japão é hoje um dos grandes acionistas em mais de 90% das empresas no Nikkei 225. Não, não é um erro de digitação. Leia novamente. São cerca de 200 empresas em que o BoJ é um grande acionista. Na Mitsumi Electric, o BoJ detém mais de 11% das ações.

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33) Mais de 55% de todo o mercado de ETFs (Exchange Traded Funds) pertence ao BoJ.

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34) Agora imagine o BACEN acumulando títulos de dívida emitidos pela Petrobrás, Gerdau, Ambev, Vale. Inacreditável, não? Pois o Banco do Japão também faz isso. Na sequência da crise de 2008, o BoJ passou a intervir no mercado para socorrer empresas com dificuldade de financiamento e hoje possui um portfólio de ¥ 5,5 trilhões (aprox. US$ 52 bi) de obrigações corporativas e papel comercial.

35) Consegue imaginar o BACEN a comprar obrigações da Ambev? Nem precisa imaginar, basta olhar para o BCE, que já adquiriu papéis da AB Inbev no mercado europeu, como parte do recém-expandido Programa de Compras de Ativos (APP, Asset Purchase Programme). Depois de inundar o mercado com liquidez para cumprir a meta de €60 biliões em compras de títulos soberanos por mês, Mario Draghi ampliou o âmbito da versão europeia do QE e, juntando-se ao BoJ, passou a "diversificar" o portfólio da autoridade monetária da UE, prometendo aumentá-lo com alguns bilhões de dívida corporativa a partir de junho.

36) Quando feito o anúncio, em março, apenas dívida com "grau de investimento" seria elegível no programa do BCE. Mas, como Draghi definiu uma base aos rendimentos dos títulos a serem adquiridos — não menos que a taxa da "deposit facility", atualmente em 0,40% negativos —, e uma boa parte das obrigações empresariais europeias já está a ser negociada abaixo de zero, o BCE viu-se obrigado a ceder, e logo na primeira intervenção no mercado comprou, além de AB Inbev, também dívida da Telecom Italia, classificada como "grau especulativo" pela Moody's e S&P.

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37) Fixada inicialmente em -0,10%, a taxa da "deposit facility" logo teve de ser reduzida para - 0,20% e depois -0,40% — como previsto neste artigo — porque o BCE restringiu a si próprio ao impor tal taxa como base para a compra de ativos. O problema é que, tão logo as compras começaram, Draghi acabou achatando e reduzindo toda a curva de juros na Europa. Resultado? Sobraram poucos títulos elegíveis para o QE. Reduzir ainda mais a taxa da deposit facility era inevitável.

38) Toda a curva de juros da Alemanha até 5 anos está com rendimentos abaixo de -0,40%.  Isso significa que Draghi necessariamente trabalhará na ponta mais longa da curva e/ou comprará mais títulos de países periféricos como os do PIIGS.

12.png 39) Assim como o Fed, o BCE não tem intenção de reverter o seu balanço após as intervenções do QE. Quando do vencimento dos títulos, Draghi vai rolar ou reinvestir — mesmo se algumas obrigações se tornarem "lixo" (junk). As empresas já têm se antecipado e emitido dívidas pensando no BCE como potencial comprador — as emissões neste primeiro semestre explodiram —, o que é lógico e inevitável, pois nada mais natural que aproveitar esta "janela de mercado" em que o único ente com "recursos ilimitados" (impressora de dinheiro) garante intervenções mensais bilionárias e sem data para terminar.

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40) No âmbito ampliado do Programa de Compras de Ativos (o APP) do BCE, a meta quantitativa passa a ser de € 80 mil milhões por mês. Isso equivale à produção anual do Uruguai. Considerando um total de € 960 mil milhões por ano, o APP é 40% maior que o PIB da Holanda, ou do tamanho do PIB da Espanha, ou um 1/3 do PIB da Alemanha. Mas ao contrário da produção anual de um país, produzir € 80 mil milhões não custa praticamente nada ao BCE. Veja que lindo e didático vídeo sobre o APP:

41) Dos 616 mil milhões de francos suíços detidos pelo Banco Nacional da Suíça na forma de investimento em moeda estrangeira, 20% correspondem a ações de empresas — ou CHF 123 mil milhões —, o equivalente a 25% do valor de mercado de todas as empresas listadas na Bovespa. O Banco Central da Suíça é um dos grandes acionistas da Apple, da Exxon Mobil, da Johnson & Johnson. Além disso, o BNS ainda possui CHF 74 mil milhões de obrigações corporativas no seu balanço.

42) Os Bancos Centrais são hoje um dos major players do mercado títulos privados. 

43) Obviamente, nos últimos 5 anos, diversos índices de acções bateram recordes históricos. A esmagadora maioria das bolsas dos países desenvolvidos ou alcançou  máximos históricos (muitos mantêm-se e seguem atingindo novos picos) ou estão no maior patamar desde a crise de 2008. Vejam o Dow Jones (mais de 18.000 pontos em 2015), o S&P 500 (mais de 2.100 pontos em 2015), a Nasdaq (mais de 5.200 pontos em 2015), o DAX (mais de 12.300 pontos em 2015), o Nikkei 225 (mais de 20.700 pontos em 2015). A lista é extensa.

44) Na primeira semana de julho de 2016, Walt Disney vendeu ao mercado títulos de 30 anos com juros 3% e de 10 anos com juros de 1,85% — o menor cupom da história corporativa dos Estados Unidos. Não foi do ano, nem da década. Foi o menor cupom de toda a história corporativa dos EUA.

45) A empresa alemã Henkel realizou a primeira emissão de obrigações corporativas  com juros negativos. Foi a primeira de uma empresa não estatal na Zona do Euro. Com um juro implícito de 0,05%, a companhia levantou EUR 500 milhões no dia 5 de setembro. O rendimento médio dos títulos de dívida corporativa seguem fazendo novos recordes.

46) O Banco Nacional da Suíça detém US$ 1,5 bilhão de ações da Apple. É um dos maiores acionistas da empresa. No primeiro semestre, o BNS aumentou em 50% o total de ações americanas no seu balanço, ultrapassando US$ 62 bi.

47) Na quarta-feira, dia 13 de julho, a Alemanha entrou para história financeira mundial mais uma vez: emitiu o primeiro bônus de 10 anos com cupom de 0%. Sim, o cupom do título pagará zero por cento nos próximos 10 anos. Nada. Nichts. Keine Zinsen.

Dado o momento atual, em que seus títulos com vencimento em 10 anos são negociados no mercado secundário, o governo de Merkel aproveitou a janela para testar o apetite dos investidores (e do Banco Central Europeu) e realizou um leilão com tais títulos de 0% de cupom.

E qual foi o resultado? A fome do mercado foi tanta que os títulos foram arrematados com um juro implícito de 0,05% NEGATIVO. Como a enorme procura, os investidores dispuseram-se a pagar mais do que o valor de face, o que significa que receberão de volta menos do que investiram (rendimento negativo).

48) Depois do Brexit, o total de títulos soberanos com juros negativos ultrapassou US$ 11,7 trilhões.

(Adaptado por Jorge Dias)

O AUTOR Fernando Ulrich, é mestre em Economia da Escola AUstríaca, com experiência nos mercados finaceiro e imobiliário brasileiros. É conselheiro do Instituto Mises Brasil, estudioso de teoria monetária, e mantém um blog no portal Info Money chamado "moeda digital". É autor do livro "Bitcoin - a moeda na era digital". O artigo original foi publicado em 2016 e depois disso muita água passou por debaixo das pontes. Passados 4 anos, no essencial nada mudou, apenas se acentuaram as tendências aqui reportadas. Procurarei actualizá-lo com dados mais recentes logo que possível. (JD)