domingo, 25 de outubro de 2020

 

A era da insanidade - um resumo das medidas surrealistas dos Bancos Centrais mundiais

A era do papel-moeda estatal não convertível e suportado apenas na confiança dos bancos centrais não para de se superar.
Iniciada oficialmente em 1971, após o abandono do vínculo do dólar ao ouro, a grande experiência dos bancos centrais tem dado origem a excessos recorrentes nos mercados financeiros e não dá sinal de abrandamento.

E nesse processo, o Federal Reserve (Fed), o Banco Central Europeu (BCE) e companhia descarregam munição pesada, inédita, sem precedentes e tudo sem nenhum respaldo da teoria económica, baseada unicamente no medo da deflação, e de os mercados fundirem e o sistema claudicar. O cataclismo financeiro deve ser evitado a todo custo.

Janet Yellen, a presidente do Fed, não exclui nenhuma opção; juros negativos podem ser adotados nos EUA sim. Christine Lagarde, do Banco Central Europeu, promete fazer "tudo o que for necessário". Haruhiko Kuroda, do Banco Central do Japão, jura combater a deflação até as últimas consequências.

E os restantes banqueiros centrais dançam conforme a música: juros negativos, quantitative easing (QE), compra de activos em larga escala.

A extraordinária liquidez injetada no sistema de alguma forma acaba por se manifestar. Cedo ou tarde, aparecem os sintomas decorrentes das políticas monetárias não-convencionais implantadas, especialmente, desde a crise financeira de 2008.

As distorções nos preços dos activos abundam. A magnitude das acções dos bancos centrais assombra cada vez mais. As economias patinam e o mercado laboral preocupa. Mas, a despeito de tudo o que foi feito, os índices de preços ao consumidor não registram aumentos expressivos. O que é pior — na visão dos banqueiros centrais —, em vários países o fantasma da deflação teima em não desaparecer.

Mas não se preocupem, defendem eles, está tudo sob controle. Eles sabem o que estão fazendo. Será que sabem mesmo?

Vejamos alguns factos surreais da economia mundial atual que talvez nos façam, pelo menos, levantar alguns pontos de interrogação.

As políticas não convencionais: taxa básica de juros, QEs e balanços dos bancos centrais

1) Há 35 países com taxas de juros abaixo de 1%. Isso inclui todos os países do G8 e toda a Zona do Euro. Quase 50% do PIB mundial com juros nesse patamar inédito.

2) Com taxas abaixo de 3%, existem 50 países atualmente.

3) Há 5 bancos centrais que já adotaram alguma forma de taxa de juros negativa, ou 23 países submetidos a essa experiência inusitada (Japão, Dinamarca, Suécia, Suíça e todos os membros da Zona do Euro).

4) O Federal Reserve está com juros entre zero e 0,5% há 90 meses, quase uma década. Isto nunca ocorreu na história. No último meio século, os juros situaram-se ao redor de 1% por, não mais do que 6 meses. 

5) Há mais de duas décadas que o Banco do Japão (BoJ) mantém os juros em zero.

6) Após as diversas rodadas de QE, o Fed multiplicou o seu balanço por 5 numa questão de seis anos, alcançando US$ 4,5 triliões.(4,5*10^12)

7) Já o Banco da Inglaterra aumentou em 5 vezes os seus activos desde a  crise de 2008.

 01.jpg

8) Desde o início do chamado "Abenomics", em 2013, o Banco do Japão aumentou o seu balanço em cerca de 200%.

01a.png

9) O BoJ já está na nona rodada de QE (quantitative easing).

10) Banco Nacional da Suíça (BNS), na tentativa de sustentar uma base para o euro, expandiu os seus activos na ordem de 5,5 vezes desde 2008, ultrapassando 668 biliões (668*10^9) de francos, o que equivale a mais de 100% do PIB.

02.png

11) Já o BCE de Mario Draghi praticamente triplicou o balanço nos últimos seis anos.

03.png

12)  A magnitude da expansão monetária perpetrada pelos BCs dos países desenvolvidos é comparável a de países que enfrentaram alta inflação ou hiperinflação, como o Brasil da década de 80, o Zimbábue nos anos 2000, a Argentina na era Kirchner e a Venezuela nos últimos anos.

03a.png E o resultado disso tudo? Rendimentos dos títulos (taxa de juros, ou yield), índices de ações, e outros ativos

13)  Os rendimentos das dívidas soberanas estão no menor patamar de toda a história financeira do mundo.

04.png

14) Os juros implícitos nos títulos da Holanda, cujos registos de há 500 anos, nunca estiveram tão baixos.

04a.png

15)  O endividamento de grande parte dos governos também está em níveis recordes. Um paradoxo das finanças pós-bancos centrais.

16)  Lembra-se da crise de dívida soberana de 2010/11 dos chamados PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Espanha e Grécia)? À excepção da Irlanda, todas as outras nações estão com um endividamento maior do que aquando da eclosão da crise. Mas o custo do refinanciamento das dívidas baixou, a despeito de tudo. 

17)  O German Bund de 10 anos é negociado a quase 0%, um recorde. Por sinal, está prestes a entrar em  terreno negativo.

18) A Inglaterra realizou um leilão de títulos de 30 anos com cupons de 2,095%, algo inédito para o país. O Gilt de 10 anos também regista as menores taxas de juros da história. 

19) O corolário de juros a níveis irrisórios é o custo de refinanciamento baixíssimo para os governos. Em virtude disso, o Tesouro da Inglaterra resgatou em 2014 os primeiros títulos perpétuos — os quais pagavam um cupom de cerca de 5% e não tinham data para amortização — emitidos durante a bolha do South Sea Company, durante as guerras Napoleônicas e da Crimeia, e durante a Primeira Guerra Mundial.

20) A curva de juros da Suíça (yield curve) está negativa até 33 anos e toda a curva de juros até 5 anos está com taxas abaixo de 1% negativo. Um recorde absoluto — e surreal — da história financeira mundial. Os títulos de dívida a 30 anos rendem 0,07% ao ano. É possível que, no momento em que este artigo for publicado, a curva inteira já esteja abaixo de zero.

Os títulos dívida da Suíça com vencimento a 50 anos (sim, cinquenta) está com rendimento negativo. Se você segurar esse papel por cinco décadas, receberá menos do que o principal investido.

05.png

21) Já a curva de juros do Japão apresenta rendimentos negativos até 15 anos. Vender JGBs (japanese government bonds) a descoberto continua a fazer viúvas (widowmaker trade), há décadas. E o governo deve 250% do PIB.

06.jpg

22) O German Bund de 10 anos entrou em terreno  negativo. Agora toda a curva e juros da Alemanha até 10 anos está abaixo de zero. E, devido às incertezas do Brexit, o Bund já está a ser negociado a -0,11%. O Bund de 15 anos está quase negativo. Toda a curva de juros até 5 anos está menos 0,5% negativos. Dados de 27/06/16.

23) Até meados de 2014, era desprezível a quantidade de títulos soberanos sendo negociados com rendimento abaixo de zero.

24) Há pouco mais de um ano, quase US$ 2 trilhões de títulos eram  negociados com rendimentos abaixo de zero. 

25) Em janeiro deste ano, já havia um total de US$ 5 trilhões de dívida soberana com juros negativos.

07.png

26) Um mês depois, esse montante subiu para US$ 7 trilhões.

27) E, em Junho, ultrapassou nada menos que US$ 10 trilhões.

08.png

28) Quase 90% do mercado global de dívida soberana, cerca de US$ 22 triliões, rende não mais do que 2% ao ano.

29) O Banco do Japão detém hoje 35% da dívida pública do governo. Há 3 anos, isso não passava de 11%.

30) Nos EUA, o Fed detém 15% da dívida pública federal. Em 2008, os Treasuries no balanço do Fed representavam apenas 5% do total emitido.

31) Quase US$ 1,8 triliões é o valor das hipotecas no balanço do Fed. Sim, as famosas mortgage-backed securities (MBS, títulos suportados em hipotecas) que quase destruiram o sistema bancário americano em 2008. O valor real de mercado desses ativos? Só Deus sabe.

32) Como resultado dos estímulos agressivos do "Abenomics", o Banco do Japão é hoje um dos grandes acionistas em mais de 90% das empresas no Nikkei 225. Não, não é um erro de digitação. Leia novamente. São cerca de 200 empresas em que o BoJ é um grande acionista. Na Mitsumi Electric, o BoJ detém mais de 11% das ações.

09.png

33) Mais de 55% de todo o mercado de ETFs (Exchange Traded Funds) pertence ao BoJ.

10.png

34) Agora imagine o BACEN acumulando títulos de dívida emitidos pela Petrobrás, Gerdau, Ambev, Vale. Inacreditável, não? Pois o Banco do Japão também faz isso. Na sequência da crise de 2008, o BoJ passou a intervir no mercado para socorrer empresas com dificuldade de financiamento e hoje possui um portfólio de ¥ 5,5 trilhões (aprox. US$ 52 bi) de obrigações corporativas e papel comercial.

35) Consegue imaginar o BACEN a comprar obrigações da Ambev? Nem precisa imaginar, basta olhar para o BCE, que já adquiriu papéis da AB Inbev no mercado europeu, como parte do recém-expandido Programa de Compras de Ativos (APP, Asset Purchase Programme). Depois de inundar o mercado com liquidez para cumprir a meta de €60 biliões em compras de títulos soberanos por mês, Mario Draghi ampliou o âmbito da versão europeia do QE e, juntando-se ao BoJ, passou a "diversificar" o portfólio da autoridade monetária da UE, prometendo aumentá-lo com alguns bilhões de dívida corporativa a partir de junho.

36) Quando feito o anúncio, em março, apenas dívida com "grau de investimento" seria elegível no programa do BCE. Mas, como Draghi definiu uma base aos rendimentos dos títulos a serem adquiridos — não menos que a taxa da "deposit facility", atualmente em 0,40% negativos —, e uma boa parte das obrigações empresariais europeias já está a ser negociada abaixo de zero, o BCE viu-se obrigado a ceder, e logo na primeira intervenção no mercado comprou, além de AB Inbev, também dívida da Telecom Italia, classificada como "grau especulativo" pela Moody's e S&P.

11.jpg

37) Fixada inicialmente em -0,10%, a taxa da "deposit facility" logo teve de ser reduzida para - 0,20% e depois -0,40% — como previsto neste artigo — porque o BCE restringiu a si próprio ao impor tal taxa como base para a compra de ativos. O problema é que, tão logo as compras começaram, Draghi acabou achatando e reduzindo toda a curva de juros na Europa. Resultado? Sobraram poucos títulos elegíveis para o QE. Reduzir ainda mais a taxa da deposit facility era inevitável.

38) Toda a curva de juros da Alemanha até 5 anos está com rendimentos abaixo de -0,40%.  Isso significa que Draghi necessariamente trabalhará na ponta mais longa da curva e/ou comprará mais títulos de países periféricos como os do PIIGS.

12.png 39) Assim como o Fed, o BCE não tem intenção de reverter o seu balanço após as intervenções do QE. Quando do vencimento dos títulos, Draghi vai rolar ou reinvestir — mesmo se algumas obrigações se tornarem "lixo" (junk). As empresas já têm se antecipado e emitido dívidas pensando no BCE como potencial comprador — as emissões neste primeiro semestre explodiram —, o que é lógico e inevitável, pois nada mais natural que aproveitar esta "janela de mercado" em que o único ente com "recursos ilimitados" (impressora de dinheiro) garante intervenções mensais bilionárias e sem data para terminar.

13.png

40) No âmbito ampliado do Programa de Compras de Ativos (o APP) do BCE, a meta quantitativa passa a ser de € 80 mil milhões por mês. Isso equivale à produção anual do Uruguai. Considerando um total de € 960 mil milhões por ano, o APP é 40% maior que o PIB da Holanda, ou do tamanho do PIB da Espanha, ou um 1/3 do PIB da Alemanha. Mas ao contrário da produção anual de um país, produzir € 80 mil milhões não custa praticamente nada ao BCE. Veja que lindo e didático vídeo sobre o APP:

41) Dos 616 mil milhões de francos suíços detidos pelo Banco Nacional da Suíça na forma de investimento em moeda estrangeira, 20% correspondem a ações de empresas — ou CHF 123 mil milhões —, o equivalente a 25% do valor de mercado de todas as empresas listadas na Bovespa. O Banco Central da Suíça é um dos grandes acionistas da Apple, da Exxon Mobil, da Johnson & Johnson. Além disso, o BNS ainda possui CHF 74 mil milhões de obrigações corporativas no seu balanço.

42) Os Bancos Centrais são hoje um dos major players do mercado títulos privados. 

43) Obviamente, nos últimos 5 anos, diversos índices de acções bateram recordes históricos. A esmagadora maioria das bolsas dos países desenvolvidos ou alcançou  máximos históricos (muitos mantêm-se e seguem atingindo novos picos) ou estão no maior patamar desde a crise de 2008. Vejam o Dow Jones (mais de 18.000 pontos em 2015), o S&P 500 (mais de 2.100 pontos em 2015), a Nasdaq (mais de 5.200 pontos em 2015), o DAX (mais de 12.300 pontos em 2015), o Nikkei 225 (mais de 20.700 pontos em 2015). A lista é extensa.

44) Na primeira semana de julho de 2016, Walt Disney vendeu ao mercado títulos de 30 anos com juros 3% e de 10 anos com juros de 1,85% — o menor cupom da história corporativa dos Estados Unidos. Não foi do ano, nem da década. Foi o menor cupom de toda a história corporativa dos EUA.

45) A empresa alemã Henkel realizou a primeira emissão de obrigações corporativas  com juros negativos. Foi a primeira de uma empresa não estatal na Zona do Euro. Com um juro implícito de 0,05%, a companhia levantou EUR 500 milhões no dia 5 de setembro. O rendimento médio dos títulos de dívida corporativa seguem fazendo novos recordes.

46) O Banco Nacional da Suíça detém US$ 1,5 bilhão de ações da Apple. É um dos maiores acionistas da empresa. No primeiro semestre, o BNS aumentou em 50% o total de ações americanas no seu balanço, ultrapassando US$ 62 bi.

47) Na quarta-feira, dia 13 de julho, a Alemanha entrou para história financeira mundial mais uma vez: emitiu o primeiro bônus de 10 anos com cupom de 0%. Sim, o cupom do título pagará zero por cento nos próximos 10 anos. Nada. Nichts. Keine Zinsen.

Dado o momento atual, em que seus títulos com vencimento em 10 anos são negociados no mercado secundário, o governo de Merkel aproveitou a janela para testar o apetite dos investidores (e do Banco Central Europeu) e realizou um leilão com tais títulos de 0% de cupom.

E qual foi o resultado? A fome do mercado foi tanta que os títulos foram arrematados com um juro implícito de 0,05% NEGATIVO. Como a enorme procura, os investidores dispuseram-se a pagar mais do que o valor de face, o que significa que receberão de volta menos do que investiram (rendimento negativo).

48) Depois do Brexit, o total de títulos soberanos com juros negativos ultrapassou US$ 11,7 trilhões.

(Adaptado por Jorge Dias)

O AUTOR Fernando Ulrich, é mestre em Economia da Escola AUstríaca, com experiência nos mercados finaceiro e imobiliário brasileiros. É conselheiro do Instituto Mises Brasil, estudioso de teoria monetária, e mantém um blog no portal Info Money chamado "moeda digital". É autor do livro "Bitcoin - a moeda na era digital". O artigo original foi publicado em 2016 e depois disso muita água passou por debaixo das pontes. Passados 4 anos, no essencial nada mudou, apenas se acentuaram as tendências aqui reportadas. Procurarei actualizá-lo com dados mais recentes logo que possível. (JD)


0 Commentários:

Enviar um comentário