domingo, 25 de outubro de 2020

 O que é e quais efeitos tem um programa de “abrandamento quantitativo” (AQ) ou (QE)

O Banco Central Europeu anunciou, em janeiro, que iria adoptar a política do "abrandamento quantitativo" (AQ), chamado tecnicamente de Quantitative Easing (QE).  O plano é comprar, mensalmente, 60.000 milhões de euros em títulos públicos e privados na posse do sistema bancário.  O programa será mantido até totalizar o valor de 1,1 biliões de euros.

O Federal Reserve, o Banco Central americano, adotou o AQ do início de 2009 até outubro de 2014.  O Banco Central do Japão, o pioneiro, adoptou-o em março de 2001, e voltou com tudo em 2011.  O Banco Central da Inglaterra começou em 2009 e ainda não parou.  Já o Banco Central da Suécia adoptou o programa em fevereiro de 2015.

No entender de muitos, este programa de "injeção de dinheiro" na economia é a chave para a recuperação.  No entanto, para avaliar realmente os seus efeitos, convém conhecer tanto sua natureza quanto suas consequências.

Em que consiste exatamente o abrandamento quantitativo (AQ)?

O AQ não é mais do que a compra, pelo Banco Central, de determinados activos na posse do sistema bancário. 

Imagine que um determinado banco do seu país (o Banco A) tenha adquirido recentemente um título do Tesouro pelo valor de €10 milhões, e cujo prazo de vencimento é de 10 anos (enquanto o título não vence, o Banco A recebe juros do tesouro). 

Agora, suponha que o Banco A repentinamente esteja necessitado de aumentar a sua liquidez.  Neste caso, dado que ainda falta uma década para o que o governo do seu país devolva o dinheiro que o Banco A lhe emprestou, o Banco A tem duas opções:

  • 1) pedir um empréstimo  ao próprio Banco Central, utilizando esse título do Tesouro como garantia (como quem pede um empréstimo para a compra de um imóvel e fornece como garantia o próprio imóvel); ou
  • 2) vender o título da dívida a outros investidores.

O problema com a primeira opção é que ela representa uma solução apenas temporária. Afinal, o empréstimo junto do Banco Central terá de ser liquidado.  Além do mais, ainda há um custo financeiro: o crédito que o Banco Central concedeu ao Banco A vencerá em pouco tempo (na Europa, pode ser um mês, um trimestre ou, na melhor das hipóteses, 3 anos), e o Banco A ainda terá de pagar juros ao Banco Central.  Ou seja, na prática, o Banco A não melhora estruturalmente a sua liquidez: o saldo de caixa apenas aumenta temporariamente, e ainda com o ónus de arcar com um custo financeiro.

A segunda opção é, em princípio, mais interessante para o Banco A: ele vende o título da dívida pública a outro banco (por exemplo, o Banco B), recebe o dinheiro imediatamente, e  desfaz-se em definitivo desse título, conseguindo melhorar de forma estrutural a sua liquidez sem a necessidade de pagar juros  ao Banco B.

No entanto, do ponto de vista macroeconómico, essa transação tem um defeito: sim, o Banco A melhora a sua liquidez, mas fá-lo à custa de uma pior da liquidez do Banco B. (O Banco B reduziu o seu saldo de caixa ao comprar o título da dívida na posse do Banco A). 

O que fazer, então, se o nosso objetivo é o de que alguns bancos melhorem a sua liquidez sem que outros, no entanto, piorem as suas?  É aqui que entram os programas de abrandamento quantitativo.

Mediante um AQ, é o Banco Central quem compra a dívida pública (ou qualquer dívida privada) na posse dos bancos.  E como faz essa compra?  Criando dinheiro do nada.  Na prática, o Banco Central simplesmente aumenta o saldo da conta-corrente que os bancos têm perante o Banco Central, criando novos dígitos eletrónicos nessas contas.  O efeito é exatamente o mesmo de imprimir dinheiro.

Consequentemente, e seguindo nosso exemplo anterior, o Banco A pode melhorar estruturalmente a sua liquidez sem que nenhum outro banco tenha piorado a sua, pois o Banco Central criou nova liquidez com a qual saneou o balancete do Banco A.

Supostamente, quais são os efeitos?

Segundo alegam os defensores dessa política, os programas de AQ possuem vários efeitos que resultam em benefícios para o conjunto da economia e que permitem reanimá-la:

  • Em primeiro lugar, contribuem para reduzir as taxas de juro: se o Banco Central aumenta a procura por determinados títulos da dívida pública, a taxa de juro desses títulos irá cair (para simplificar: comprar um título da dívida é equivalente a emprestar ao emissor desse título; e quanto maior a oferta de empréstimos, menores os juros). Por si só, isso já constitui um estímulo para as entidades cujos títulos da dívida são comprados pelo Banco Central: os juros mais baixos tornam mais barato o seu custo de financiamento.  O Tesouro, por exemplo, poderá agora endividar-se a custos mais baixos, liberando recursos para outros fins.
  • Em segundo lugar, a situação financeira dos bancos irá melhorar: uma parte dos seus ativos (empréstimos concedidos ao governo) deixará de estar comprometida a longo prazo, pois estes ativos foram substituídos por liquidez criada pelo Banco Central. 
  • Em terceiro lugar, a combinação entre juros mais baixos e aumento da liquidez dos bancos deveria aumentar a concessão de novos empréstimos  ao setor produtivo da economia.  Por um lado, os balancetes dos bancos estão mais sólidos por causa do AQ e, consequentemente, os bancos dispõem da maior capacidade para conceder novos empréstimos.  Por outro, as taxas de juros mais baixas agora vigentes sobre certos tipos de dívida (por exemplo, a dívida pública) farão com que os bancos procurem outras entidades onde investir a sua nova liquidez: se os cómodos e seguros títulos da dívida não são mais um bom negócio (pois os programas de AQ reduziram os seus rendimentos), então aos bancos não restará alternativa senão assumir maiores riscos e emprestar a famílias e empresas essa nova liquidez  recebida do Banco Central. Adicionalmente, dado que haverá agora vários bancos disponíveis para emprestar a famílias e empresas, as taxas de juros sobre o crédito privado cairão, o que fará com que mais pessoas e empresas se endividem para consumir e investir.
  • Em quarto lugar, o aumento do crédito ao setor privado, e o consequente aumento do consumo e dos investimentos com base no endividamento, trará efeitos positivos para a economia.  Um maior gasto privado tenderá a ressuscitar a economia e, desta forma, não apenas irá reanimar a "atividade económica", como também irá elevar os preços, afastando assim o "terrível" fantasma da deflação.
  • Em quinto lugar, uma parte do consumo estimulado pelo crédito sairá para o exterior e, para isso, será necessário vencer a moeda nacional em troca de outras moedas.  No contexto europeu, o euro terá de ser vendido em troca de dólares, libras ou ienes, o que fará com que estas se apreciem frente ao euro.  Adicionalmente, como todo o mundo antecipará essa depreciação do euro, os especuladores tenderão a acelerá-la, liquidando suas posições em euro ou fazendo vendas a descoberto com a moeda europeia.
  • Em sexto lugar, e por último, a maior disponibilidade de crédito barato, o maior gasto interno, o aumento dos preços, a desvalorização da moeda, e a expectativa de que essas condições de abrandamento e bonança serão mantidas pelo tempo que for necessário para reativar o crescimento económico formarão um marco macroeconómico no qual os agentes se sentirão confiantes para voltar a endividar-se, a investir, a consumir, a exportar e a contratar mais trabalhadores.  Um êxito total.

Quais são as contradições?

Como já deveria ser evidente, se os programas de abrandamento quantitativo fossem tão fantásticos como o esperado, não haveria governo nenhum no mundo (nem mesmo as mais cruéis ditaduras) que deixasse de se aproveitar disso.  No entanto, claramente, este não é o caso: os programas de AQ são a excepção, e não a norma, da política monetária de um país.

Em tempos normais, o motivo é claro: quando a economia está crescendo beneficiada pelo impulso do crédito bancário, com empresas e famílias a endividar-se para investir e consumir, jogar mais lenha na fogueira irá apenas contribuir para sobreaquecer a economia e fazer com que os preços subam mais do que o desejado.

Só que, atualmente, a Europa não está nesse cenário: os bancos não emprestam, as famílias e empresas não se endividam, os preços caem, e ninguém gasta.  Portanto, sob esta realidade, o abrandamento quantitativo parece realmente ser um impulso extremamente necessário a uma economia estagnada, que não viria acompanhado de efeitos adversos.

Só que nem tudo são flores: ao passo que o AQ não irá provocar, no médio prazo, nada parecido com uma elevada inflação, isso não significa que não traga outras consequências prejudiciais.

  • O primeiro efeito é que as baixas taxas de juros não têm por que estimular um novo ciclo de endividamento que reanime a economia, excepto para as entidades governamentais.  Estas continuam plenamente interessadas em manter os déficits orçamentais, que aumentam a dívida bruta, a qual é impunemente transferida para as gerações futuras.  Juros mais baixos sobre a dívida pública sem dúvida facilitam a indisciplina dos governos com o dinheiro dos pagadores de impostos. Para famílias e empresas, no entanto, o raciocínio não se aplica: se elas continuam altamente endividadas, a sua capacidade de gerar riqueza futura é incerta, facilitar-lhes de maneira artificial o endividamento não as levará a aumentar ainda mais seus passivos.  Consequentemente, o dinheiro injetado pelo Banco Central no sistema bancário continuará parado nos cofres dos bancos.  É possível levar o cavalo ao rio (facilitar o endividamento), mas não é possível obrigá-lo a beber a água do rio (endividar-se). Torna-se necessário enfatizar que isso não significa que a redução dos juros por meio do AQ não possua efeitos adicionais: as taxas de juros não são importantes apenas para determinar o volume de um novo endividamento, mas também para determinar o preço dos activos e o ritmo em que se amortiza a dívida passada. Instituir um ambiente de juros extremamente baixos pode não aumentar o crédito, mas seguramente irá diminuir a velocidade a que famílias e empresas reduzem antecipadamente as suas dívidas passadas.  Por exemplo, uma dívida com taxa de juros fixa passará a ser muito mais cara para ser comprada no mercado secundário, o que significa que o devedor está preso a ela; já uma dívida com taxas de juros variáveis deixará de pagar juros, o que significa que não mais será interessante amortizá-la. Adicionalmente, os juros excessivamente baixos estimulam um aumento no preço dos ativos financeiros na decorrência do seu valor presente descontado.Isso explica, em parte, a forte valorização da bolsa de valores dos EUA. A conclusão é que a redução das taxas de juros na sequência de um AQ consolida um contexto de alto endividamento e de sobrevalorização de activos: longe de facilitar o reajuste económico, — que consiste em diminuir o endividamento e direcionar o capital para projetos verdadeiramente mais valiosos — tal política o dificulta.

  • O segundo efeito é que, ainda que os juros mais baixos provocados pelo abrandamento quantitativo de facto estimulassem uma maior concessão de crédito (tal como desejam os defensores desta política), isso significaria apenas que os bancos estariam assumindo riscos maiores do que aqueles que atualmente creem ser prudente assumir.  A ideia, como referido, é que o AQ acabe com a rentabilidade dos activos seguros (títulos públicos) para que assim haja mais empréstimos para atividades rentáveis, porém menos seguras.  Mais dívida e mais risco.  E, consequentemente, muito maior fragilidade financeira: justamente a receita que conduziu o mundo ao desastre da crise atual.  Aliás, o que é mais irónico: justamente por causa dessa política, muitos dos mesmos que hoje defendem o AQ exigiram uma maior regulação do sistema financeiro.
  • O terceiro efeito, e ligando os dois pontos anteriores, é que, se o AQ estimula uma maior concessão de crédito a taxas de juros mais baixas, todos os empresários que se financiaram anteriormente a taxas de juros mais altas verão sua dívida atual como uma desvantagem competitiva.  Se os seus concorrentes conseguirem financiar-se a 2% ao passo que você tem de continuar a pagar 6% durante anos, é óbvio que há aqui algo de errado.  (Justamente porque os programas de abrandamento quantitativo elevam o valor de mercado das dívidas, quem se financiou a 6% não consegue  refinanciar-se a 2%, a menos que consiga transferir para o seu credor os prejuízos gerados por essa redução de juros). 

Consequentemente, não só haverá um estímulo para o financiamento de projetos empresariais menos seguros, como também se concede uma vantagem artificial a projetos mais insensatos em detrimento dos mais sensatos.

Conclusão

Os programas de AQ são uma injeção de liquidez que o Banco Central concede ao sistema bancário. Os claramente beneficiados por este programa são os próprios bancos (que melhoram os seus balancetes), o governo (que agora pode ser mais relaxado com o seu orçamento e endividar-se a juros bem menores), os investidores que investiram há mais tempo em activos financeiros a taxas fixas (que ganham valor com a queda dos juros no mercado), os exportadores (por causa da depreciação cambial decorrente do abrandamento quantitativo) e os devedores menos solventes (que agora não terão de liquidar as suas dívidas na mesma velocidade que antes, e cuja dívida poderá ser vendida, a um preço bem maior, no mercado secundário).

Por outro lado, e como consequência, os prejudicados são os aforradores, os pagadores de impostos, os importadores e os devedores mais solventes (que não conseguirão refinanciar-se a juros menores).

O abrandamento quantitativo premia o endividamento e o risco, e pune a poupança e a segurança.  O governo que adota esse programa não quer criar uma economia baseada em novas e boas oportunidades de negócio; quer viciá-la em práticas velhas, arriscadas e comprovadamente fracassadas.

Longe de impulsionar um reajuste salutar da economia, baseado na liberdade de mercado e poupança interna, o objetivo é espremer todo o potencial de um sistema falido dando-lhe uma sobrevida artificial.

Adaptado de um original de Juan Ramón Rallo - diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.  É o autor do livro Los Errores de la Vieja Economía. (JD)

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